Na sétima reportagem da série Quando não mata, fere,
histórias da Associação das Mulheres de Sobradinho 2. Lá, elas aprendem que não
é culpa delas serem vítimas. Também recebem apoio para viverem por conta
própria
Geralda Florisbela Gonçalves Soares compara a história dela
e a de tantas mulheres com a de Medusa. A personagem da mitologia grega nasceu
estonteantemente linda, a ponto de despertar os mais, e também os menos, nobres
desejos masculinos. Com o impulso descontrolado, o deus Poseidon a violentou
dentro do templo de Atenas. Enfurecida, a deusa da guerra não pune o agressor,
mas sim a vítima e transforma a bela Medusa em um monstro. Na última matéria da
série Quanto não mata, fere, o Correio mostra a transformação na vida dela e de
outras que participam da Associação das Mulheres de Sobradinho 2.
Geralda também é conhecida por Bela. Vem do segundo nome,
Florisbela. Também já foi punida por ter sido fisicamente agredida pelo
ex-marido. Alguém disse que a culpa só poderia ser dela. A agressão é por parte
da sociedade, inclusive das próprias mulheres, que acreditam que a vítima de um
contexto de violência possa ter uma parcela de culpa nessa relação doentia.
Quando faz a comparação, uma moça ouve a conversa. Ela reforça o discurso que
Bela acabou de criticar: “A mulher que apanha é porque não faz nada para mudar.
Eu já apanhei e saí de casa, arrumei a minha vida”, comentou a ouvinte. Uma das
diretoras da Associação, Bela escutou tamanho disparate não sem indignação.
“Você acha que eu queria apanhar?”, ela pergunta à outra.
Não! Bela nunca quis ser ferida pelo homem que amava
profundamente. Nem ela nem as mulheres que acolhe há 16 anos, quando decidiu
reunir, nos fundos da própria casa, um grupo de 12 amigas. Todas eram vítimas
de agressão masculina. Nascia, assim, uma associação para mulheres, que hoje
funciona um prédio antes abandonado — que inclusive está com dias contados para
ser retomado pelo governo. Era local usado por usuários de droga. Bela chegou
ali com a polícia, mandou drogados embora e se instalou com poucos móveis, os
companheiros voluntários e muita vontade de ajudar.
Ferida na alma
Mas a voz altiva de Florisbela calou-se durante três anos de
agressão dentro de casa. Era 1986 quando ela se casou com um delegado. Foram
cinco ou seis anos de união tranquila. Até que ele começou a ser agressivo com
os filhos dele, criados pelo casal. Bela foi intervir em uma das brigas e, pela
primeira vez, conheceu a nova face do homem que tinha como seu amor. Ele feriu
a alma, a autoestima ao deixar marcas de uma mangueira nas costas dela.
Ficou fácil para ele, a partir de então, espancá-la e
ofendê-la. A mesma voz que se calou diante daquele absurdo quase 20 anos depois
ainda embarga e gagueja ao relembrar dos episódios. “A gente tem mesmo que
mexer nisso?”, pergunta, emocionada. Não havia uma razão para os tapas, os
murros, os xingamentos. Bela cuidava da casa, da comida e nunca deixava faltar
o chinelo dele ao lado da cama. Ele dizia que era culpa do estresse ou da
aposentadoria. Exibia a arma, que só hoje ela entende que podia ser forma de
intimidação.
A surra sempre vinha acompanhada de um posterior pedido de
desculpas, rosas ou perfumes. Ela achava que ele mudaria. Até que o olho ficou
roxo. Ninguém acreditava que o marido era um agressor. Ela temia perder a
garantia da vida financeira. Até que teve coragem e se separou. Saiu de casa
com os três filhos. “Comi o pão que o diabo amassou.” Ganhou a vida cozinhando
congelados. Refez a vida, mas nunca esqueceu. Para tornar a dor menos pesada de
carregar, decidiu compartilhá-la. Quando se reuniu com as amigas naquela
despretensiosa terapia em grupo, queria ouvir e ser ouvida. Não parou mais. Na
associação que dirige, a proposta é, inicialmente, dar conforto a quem tem
vergonha de se olhar no espelho por ser espancada. A ideia é mostrar que não
são as únicas a enfrentar a dor de uma mão pesada no rosto ou um chute pelo
corpo.
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