Diz a Bíblia: “E em Israel nunca mais surgiu um profeta como
Moisés, a quem o Senhor conhecia face a face”. Esta frase está no último
capítulo do livro do Deuteronômio, logo após a narrativa da morte do herói.
Tamanha intimidade com Deus teria permitido que o líder israelita visse o
próprio Criador (ainda que não o rosto divino, que não podia ser vislumbrado) e
recebesse das mãos dele as tábuas com os Dez Mandamentos, a base da legislação
sagrada que judeus e cristãos veneram até hoje. De quebra, segundo a tradição
judaica, os cinco primeiros livros da Bíblia, que compõem a parte mais sagrada
do Velho Testamento, seriam obra de Moisés.
Só tem um problema: descobertas de historiadores e
arqueólogos têm lentamente desmontado a saga de Moisés. O libertador dos
israelitas talvez seja uma figura quase tão mitológica quanto Daenerys
Targaryen, a heroína de Guerra dos Tronos. É verdade que um líder tribal
chamado Moisés, ou algo parecido, pode até ter existido há 3 mil anos, mas
basicamente nenhum feito atribuído a ele passa pela peneira do escrutínio
histórico. Por outro lado, a saga que está na Bíblia não surgiu do nada. Ela é
fruto de um longo processo histórico, que culminou na criação do monoteísmo.
Essa saga, embora não contenha milagres e talvez seja complexa demais para
virar novela, é tão fascinante quanto a narrada pelo Livro Sagrado. Vamos a
ela.
A primeira pista para dissecarmos a verdadeira origem da
lenda de Moisés está no nome dele e de seus parentes. Apesar de, segundo a
Bíblia, todos eles serem israelitas, seus nomes não são em hebraico, a língua
desse povo. As denominações “Moisés”, “Aarão” (seu irmão) e “Fineias” (seu
sobrinho-neto) são derivadas do idioma egípcio.
“Moisés”, por exemplo, tem a mesma origem que as terminações
dos nomes dos faraós Ramsés e Tutmósis. Os três derivam do egípcio antigo
“msézs”, que significa “filhos de” – Ramsés, portanto, quer dizer “filho do
deus Ra” (faraós não eram modestos). “No caso de Moisés, falta o nome da
divindade da qual ele seria considerado filho”, destaca o teólogo Leonardo
Agostini Fernandes, especialista em Antigo Testamento da PUC-RJ. Ou seja: o
nome “Moisés” estaria para o nome “Tutmósis” assim como “son” está para
“Anderson”. Não é um nome, mas um sufixo, que nem faz sentido sem o devido
prefixo. Isso pode significar, primeiro, que o herói é completamente lendário.
Segundo, que seus criadores queriam dar ao personagem um nome que soasse
egípcio (já que o Egito era a grande potência da época), mas erraram a mão por
não conhecerem bem a língua estrangeira. Mais ou menos como acontece hoje com
quem batiza o filho como “Maicon”.
Mas por que inventar um personagem de nome “egipciado”, e
não israelita (como seria se ele se chamasse “Saul” ou “Isaías”)? Provavelmente
por causa do domínio que o Egito exerceu sobre vastas áreas do Oriente Médio no
período final da Idade do Bronze (de 1500 a.C. até uns 1200 a.C.). Nessa época,
boa parte dos territórios atuais de Israel, Palestina, Jordânia, Líbano e Síria
não passavam de províncias egípcias, controladas pelos faraós com o auxílio de
nobres vassalos das cidades-Estado da região.
Entre 1200 a.C. e 1100 a.C., porém, o império egípcio
desmoronou – o motivo mais provável é que uma mudança climática tenha causado
um período de fome, desestabilizando o Estado. E olha só: exatamente nessa
época, como arqueólogos do século 20
descobririam, surgiu uma nova onda de assentamentos nas montanhas de Canaã:
seriam os primeiros vilarejos israelitas, levantados no vácuo de poder que
instalou-se em Canaã com o fim do domínio dos faraós. Essa comunidade, como
qualquer agrupamento humano, tinha suas histórias – lendas para serem contadas
em volta da fogueira. Uma dessas lendas provavelmente envolvia rebeldes
egípcios que ajudaram a fundar a própria comunidade na periferia dos domínios
faraônicos, conforme o governo se desmantelava. As figuras lendárias de Moisés (e de Aarão, e de
Fineias) teriam nascido nesse momento de transição, como personagens de
histórias orais, que cresciam e se multiplicavam de fogueira em fogueira,
enquanto a comunidade israelita se firmava numa Canaã agora livre do jugo
egípcio.
Quem conhece a Bíblia sabe que essa é uma realidade bem
diferente da registrada ali. Só para recapitular: no Livro Sagrado, a
comunidade israelita começou como uma família, por volta de 1900 a.C., cujo
patriarca era justamente um homem chamado Israel (e nascido com o nome de
Jacó). No fim da vida, Jacó/Israel sai de Canaã com seus filhos e netos. Sai
para morar no Egito, onde José, outro de seus 12 filhos, é uma espécie de
primeiro-ministro. A família cresce nos séculos seguintes até se tonar uma
nação de mais de 1 mihão de indivíduos, encravada em pleno Delta do Nilo, bem
longe de Canaã.
Essa nova nação, diz o texto bíblico, acaba escravizada
pelos egípcios. Então surge Moisés, um descendente de Jacó que crescera como
príncipe na corte egípcia. Ele liberta seu povo e termina guiando-o para Canaã,
a terra que Jacó e seus filhos tinham deixado para trás 400 anos antes – a
mesma terra que, lá atrás, tinha sido prometida por Deus a Abraão, avô de Jacó.
Na vida real, como a arqueologia deixa claro, não foi bem
isso: a nação de Israel surgiu a partir de tribos que sempre haviam morado em
Canaã mesmo. Eles eram cananeus da gema. Nunca, jamais, moraram no Egito.
Muitos cananeus proto-israelitas (cujos netos e bisnetos formariam o povo de
Israel lá na frente) certamente foram escravos de egípcios – inclusive dentro
de Canaã, já que esse era o destino de vários habitantes de regiões dominadas.
Daí teria surgido a história de que toda a comunidade israelita formou-se como
nação enquanto era escrava.
Mario Liverani, arqueólogo da Universidade La Sapienza, em
Roma, é um dos pesquisadores que defendem essa tese. Seu ponto de vista é o
seguinte: com o passar dos séculos, as sagas sobre a libertação do jugo egípcio
dentro da Terra Prometida passaram a ser contadas como uma fuga épica do Egito
para a Terra Prometida. Simples assim.
Outra certeza dos historiadores é que Moisés não escreveu o
quinteto inicial de livros bíblicos – Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio.
As pistas a esse respeito são diversas, a começar pela
presença de várias narrativas diferentes, e muitas vezes contraditórias, do
mesmo evento nos livros supostamente mosaicos. Há, por exemplo, três versões
diferentes dos Dez Mandamentos. Como ninguém imagina que Moisés andava se
esquecendo das coisas e escrevendo a mesma história diversas vezes, com
variações, a hipótese dominante desde o século 19 é que vários textos antigos
foram costurados e editados para produzir o Pentateuco, os “cinco livros de Moisés”,
que os judeus chamam de Torá.
Mais: todos os textos do Livro Sagrado foram escritos
séculos depois do suposto Êxodo do Egito, que teria começado em 1446 a.C.,
segundo a cronologia bíblica. A redação dos primeiros textos data de, no
mínimo, 800 a.C., época em que os israelitas já formavam uma sociedade próspera
e organizada – ou seja, com exércitos, sacerdotes, escribas, burocratas; o
único tipo de ambiente capaz de produzir obras literárias complexas. Essa fase
teria começado quando uma dúzia de tribos se uniu nas montanhas de Canaã para
formar um Estado propriamente dito, o reino de Israel. Em poucas gerações,
porém, essa nação acabou dividida em duas: as rivais Judá, no sul de Canaã, e
outra, ao norte, que manteve o nome antigo (Israel). A capital de Judá era
Jerusalém, a cidade mais importante do reino original. Já os monarcas de Israel
( “Israel 2”, no caso) viviam na luxuosa Samaria.
Seja como for, os habitantes dos dois reinos podem ser
chamados de “israelitas”. E foram os reis, sacerdotes e escribas israelitas,
tanto de Judá como de Israel, que colocaram no papiro as histórias de beira de
fogueira que seu povo contava desde 1200 a.C., 1100 a.C. Essas histórias,
diga-se, se tornariam a coluna vertebral do maior best-seller de todos os
tempos, a Bíblia.
Mas não foram só lendas que entraram ali. Os textos da
Bíblia, afinal, também funcionavam como uma Constituição para os israelitas.
Segundo o que foi escrito no Livro Sagrado, Moisés recebeu das mãos de Deus a
parte mais importante dessa Constituição – os Dez Mandamentos. Mas, se Moisés
provavelmente é um personagem fictício, e a hipótese de que Deus escreveu Ele
mesmo os Mandamentos, como está na Bíblia, é questão de fé, não de história com
“H” maiúsculo, nos resta uma pergunta:
Quem escreveu os Dez Mandamentos? Boa parte da lista dos Dez
Mandamentos – “Não matarás”, “Não cometerás adultério”, “Não roubarás” –
provavelmente é bem mais antiga que a Bíblia, já que nenhuma sociedade consegue
funcionar sem esse tipo de regra. Mas a forma definitiva das leis é bem mais
recente.
Quase todos os especialistas concordam hoje que a versão
mais antiga dos Dez Mandamentos é a que consta no capítulo 5 do Deuteronômio,
livro bíblico “publicado” pela primeira vez em 622 a.C. Nesse ano, segundo o
Antigo Testamento, um texto conhecido simplesmente como o “Livro da Lei” ou
“Livro da Aliança” foi descoberto dentro do Templo de Jerusalém e levado até
Josias, rei de Judá.
De acordo com a Bíblia, essa obra seria a compilação
original das leis dadas por Deus a Moisés, que teria ficado esquecida por
séculos. De acordo com a maior parte dos pesquisadores, essa obra é o livro
bíblico hoje conhecido como Deuteronômio.
Trata-se de um livro que contém vários discursos atribuídos
a Moisés. Ali, o líder lendário do passado recita as centenas de leis
tradicionais da comunidade israelita; as Leis de Moisés, entre as quais estão
os Dez Mandamentos.
Ao tomar conhecimento do conteúdo do “Livro da Aliança”, diz
a Bíblia, Josias ficou transtornado por perceber que seu povo não estava seguindo
as leis divinas escritas ali. Não que Judá tivesse se convertido numa terra de
adúlteros, ladrões e assassinos. Mas uma coisa era fato: enquanto o Livro da
Lei falava o tempo todo que só existe UM Deus, Iahweh, e que cultuar outras
divindades era um crime mortal, Judá era uma nação politeísta. Iahweh até era o
deus principal. Mas tratava-se de apenas uma divindade em meio a tantas outras.
Leia: Os 18 Mandamentos
Josias, segue a versão bíblica da história, iniciou então um
projeto ambicioso de reforma religiosa. Primeiro, fez uma leitura pública do
livro sagrado para todos os moradores de Jerusalém, para mostrar que Moisés em
pessoa, o maior personagem das lendas israelitas, repudiava o politeísmo.
Depois destruiu as estátuas de deuses pagãos, que existiam no próprio Templo de
Jerusalém, o santuário de Iahweh.
Ele ainda eliminou os altares tradicionais na zona rural,
onde sacrifícios costumavam ser feitos a Iahweh. Dali por diante, a adoração ao
deus dos judeus, aquele que séculos mais tarde se tornaria o Deus com “D”
maiúsculo dos cristãos e muçulmanos, ficaria totalmente centralizada no Templo
em Jerusalém. A Bíblia, por fim, elogia esse conjunto de medidas com toda a
pompa: “Não houve antes dele rei algum que se tivesse voltado, como ele, para
Iahweh, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com toda a sua força, em
toda a fidelidade à Lei de Moisés; nem depois dele houve algum que se lhe
pudesse comparar.”
Só para lembrar: a história de Josias até aqui é a que está
na Bíblia. Mas a verdade histórica sobre ele, ao que tudo indica, é outra, a
que vamos ver daqui em diante. Para começar, a semelhança desse elogio bíblico
com o que o Deuteronômio diz sobre Moisés no início desta matéria não é mera
coincidência. É que, justamente na época de Josias, o Egito voltava a fincar
garras em Canaã, coisa que não acontecia desde a fundação das primeiras
comunidades israelitas, aquelas que contavam histórias sobre rebeldes
libertadores em volta da fogueira, 600 anos antes de Josias.
De volta para o futuro. Os egípcios começam a avançar sobre
Canaã na condição de aliados do Império Assírio, uma potência da Mesopotâmia
(atual Iraque) que há séculos infernizava a vida dos israelitas. Em 722 a.C.,
os assírios haviam destruído o reino de Israel e anexado seu território. Nas
décadas seguintes, chegaram perto de destruir Judá. O reino acabou poupado.
Mas Josias agora temia pelo futuro de Judá. Sob a pressão de
egípcios e assírios, seu reino poderia ter o mesmo destino daquele reino de
Israel original, que acabou dividido. Sem falar que Judá era pequena até para
os padrões da Antiguidade. Com área um pouco maior que a da região
metropolitana de São Paulo, o reino não resistiria se perdesse a unidade
política. Viraria parte do Egito, ou da Assíria, e terminaria sua odisseia na
Terra, como já tinha acontecido com tantos povos e culturas do Oriente Médio.
Mas Josias tinha um plano. Para dar a unidade que ele
imaginava necessária ao seu reino, o soberano adotou uma ferramenta inédita:
proibir o culto a deuses estrangeiros. Só Iahweh, o deus nacional, poderia (e
deveria) ser cultuado. Era uma forma eficaz de evitar influências de fora, que
eventualmente poderiam rachar a nação.
Até porque, pelo que a arqueologia revela, os israelitas
sempre tinham acreditado em vários deuses. É o contrário do que diz a Bíblia,
já que ali o monoteísmo começa bem antes, com Abraão, o avô de Jacó, e sofre
apenas alguns “soluços” de politeísmo. Mas não: além de Iahweh, os israelitas
cultuavam Baal, Asherah, El… – deuses que faziam parte da mitologia de Canaã
desde mais ou menos 2000 a.C.
Josias, então, decide banir essa democracia ritualística com
o propósito de fortalecer a unidade nacional. Como? Anunciando que encontrou um
certo “Livro da Lei” perdido no Templo, um documento com quase mil anos de
idade, contendo a palavra de Moisés, em pessoa. Um documento com o líder mais
legendário ditando as leis “originais” dos Filhos de Israel. Na prática, aquilo
servia como se fosse a Bíblia inteira, já que o Livro Sagrado, até onde se
sabe, ainda não existia na forma como o conhecemos.
Na opinião de boa parte dos historiadores, essa forma final
começava a nascer ali, sob a pena de Josias. O rei teria escrito ele mesmo (com
a ajuda de sacerdotes e escribas) o “Livro da Lei”. Ele seria, então, o autor
dos Dez Mandamentos. Ele teria criado a história na qual Moisés recebe as
tábuas das mãos de Iahweh.
Agora, vamos convir: se você fosse um israelita típico,
ficaria muito, muito tentado a obedecer essas leis. Nada podia ser mais
fenomenal, mais sagrado, do que palavras escritas pelo deus nacional e
entregues para o herói nacional, o homem que libertara seu povo da escravidão
séculos atrás.
E, se você decidisse seguir mesmo essas leis, estaria
fazendo exatamente o que Josias tinha imaginado: abandonaria seu politeísmo.
Sim, porque, dos Dez Mandamentos, nada menos que três são ordens para desistir
de uma vez por todas de venerar outros deuses. Tudo para não deixar a menor
dúvida sobre o que significava ser um morador de Judá. Para aglutinar ainda
mais a população, Josias implementou outra medida: o culto a Iahweh só poderia
acontecer no Templo de Jerusalém. E uma nova religião nascia ali, em Judá: o
judaísmo.
O “Livro da Lei” de Josias acabaria dando novas cores à
história de Moisés. Agora o líder do passado não seria tratado apenas como
libertador, mas também como legislador. O Pentateuco terminaria de ser escrito
no século seguinte. E trechos do “Livro da Lei” iriam parar no futuro livro do
Êxodo, que contaria a história de Moisés do jeito que ela é conhecida hoje –
com a cestinha no Nilo, a abertura do Mar Vermelho (que provavelmente já era a
lenda oral mais antiga dos israelitas) e, para fechar com chave de ouro, os Dez
Mandamentos. A continuação da saga também ganharia sua forma final, com Josué,
sucessor de Moisés, finalmente guiando o povo de Deus para dentro da Terra
Prometida. Tudo numa grande ofensiva militar contra as cidades cananeias (e
politeístas) da região. O ápice cênico, aliás, é a conquista da cidade murada
de Jericó – outra história bíblica desmentida pela arqueologia, já que não
havia uma cidade grande com muralhas na região quando Josué teria vivido.
Outro episódio marcante que a historiografia ajuda a
descortinar é aquele que envolve um certo bezerro de ouro. A narrativa bíblica
diz que Moisés passou 40 dias e 40 noites recebendo instruções de Deus no alto
do Monte Sinai. Cansados de esperar o profeta, os israelitas teriam pedido a
Aarão, o sacerdote do Êxodo: “Faze-nos um deus que vá à nossa frente”. Usando
milhares de brincos de ouro, Aarão forjou então a estátua de um bezerro e
construiu um altar diante dela, no qual foram oferecidos sacrifícios.
Essa história também teve uma inspiração clara na vida real.
É que outra figura do passado israelita era fã de bezerros de ouro. Trata-se de
Jeroboão, primeiro monarca de Israel, o reino do norte, que mandou construir
duas dessas estátuas, uma em Betel outra em Dan, uma em cada ponta de seus
domínios. A ideia era rivalizar com o Templo de Jerusalém, em Judá.
É óbvio que o reino do sul não gostou da ideia. Tanto que,
durante sua reforma religiosa, Josias fez questão de visitar Betel (que a essa
altura pertencia oficialmente à Assíria, após o fim do reino de Israel) e
destruir o altar-bezerro construído por Jeroboão.
Moral da história: a narrativa sobre o bezerro no Êxodo
também teria sido retrojetada – ou seja, inserida no passado – para justificar
uma ação que Josias tomou na vida real.
Só tem um problema: a Judá forte e unida forjada por Josias
não se mostrou um projeto bem-sucedido. A Assíria tinha sido ela própria
dominada por outro reino da Mesopotâmia, por volta do ano 600 a.C.: o da
Babilônia. Judá, então, virou um mero peão no jogo de xadrez entre a agora
poderosa Babilônia e sua eterna pedra no sapato, o Egito. Josias morreu com
Judá ainda de pé. Mas seus sucessores, sem grande habilidade diplomática,
tomaram decisões que levaram à destruição do reino – e à deportação de milhares
de membros da elite judaica para a Babilônia, em 586 a.C.
O que a história de Moisés tem a ver com isso tudo? Bem, 50
anos após o fim do reino de Judá, as famílias dos deportados foram autorizadas a
voltar para casa e reconstruir Jerusalém. Como os israelitas do Êxodo, tiveram
de atravessar o deserto no caminho para a terra natal.
Talvez seja por isso que, no Deuteronômio, Moisés morra
pouco antes de seu povo adentrar a Terra Prometida. Na versão final do livro,
redigida pelos exilados que estavam voltando, Moisés sai de cena sem o prêmio
de colocar os pés em Canaã. E fica a mensagem: a vida do libertador não
precisava disso para fazer sentido. Tudo já tinha valido a pena.
Essa característica inspiradora, de certa forma, ajuda a
explicar o poder que a saga tem até hoje. A jornada árdua pelo deserto rumo à
liberdade motivaria vários outros povos a enfrentar seus próprios “faraós”. É o
caso dos responsáveis pela declaração de independência dos EUA, no século 18,
que construíram a primeira democracia depois da Grécia Antiga. Os
revolucionários ali quase transformaram a imagem de Moisés abrindo o Mar
Vermelho no brasão de seu país.
É isso. Acredite você ou não que a história de Moisés foi
escrita sob inspiração divina, o fato é que isso não muda em nada a força da
mensagem que está ali. Uma mensagem de superação e de luta por liberdade que
moldaria a história do mundo séculos mais tarde. E que continua viva e
influente, milênios depois de todos os impérios da Antiguidade que oprimiam a
pequena Judá terem virado pó. Parabéns, Josias. Você venceu.
Bezerro sagrado
O bezerro de ouro não é exatamente um símbolo de idolatria.
Ele ilustra a rivalidade entre Israel e Judá. Em Israel, bezerros dourados
adornavam altares a Iahweh. Isso representava concorrência ao Templo de
Jerusalém, que ficava em Judá. Como a Bíblia é em grande parte uma obra de Judá,
o bezerro surge ali como o cúmulo da heresia.
Cabeça quente
Ao testemunhar o episódio de adoração ao bezerro de ouro,
Moisés perde a cabeça e quebra as tábuas onde estão gravados os Dez
Mandamentos, diz o capítulo 34 do Êxodo. Iahweh repõe o material destroçado,
produzindo uma segunda versão. Só que esta surge bem diferente da primeira,
como você pode ver no texto acima. Ou seja: na vida real, cada lista
provavelmente foi escrita por um autor distinto, com décadas, ou séculos, de
intervalo.
Dois templos, uma medida
Quase todos os fatos da vida de Moisés são episódios
retrojetados – inseridos no passado para justificar ou sacralizar atos
realizados no presente (o presente dos autores da Bíblia). É o que acontece no
caso do Tabernáculo, o santuário portátil que, segundo o Livro Sagrado, os
israelitas usaram nos 40 anos que passaram no deserto. A Bíblia diz que o
Templo de Jerusalém foi inspirado nele. A verdade provavelmente é o oposto: o
Tabernáculo seria uma obra de ficção inserida no passado para sacralizar ainda
mais o Templo de Jerusalém.
Cenas dos próximos capítulos
Logo após a narrativa do Êxodo, vem outra, a da Conquista da
Terra Prometida – que começa com a queda das muralhas de Jericó ao som de
trombetas. O episódio da Conquista também não tem base histórica, e
provavelmente foi criado entre o reinado de Josias e o exílio na Babilônia.
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